O Cinema Icaraí será cinema somente no nome e na fachada? |
A Universidade Federal Fluminense abriu licitação para contratação
de empresa especializada para elaboração de projeto básico e projeto executivo
de restauração e revitalização do prédio do antigo Cinema Icaraí. Eu tive
bastante trabalho, mas finalmente consegui baixar todos os documentos do
processo de licitação no site do Governo Federal (www.comprasnet.gov.br) – digitar o
código da UASG (153056) e o número de concorrência (6/2013) – para poder
entender com mais detalhes o que está sendo licitado e planejado para o futuro
de um dos mais antigos cinemas de Niterói ainda de pé.
Após ler os documentos anexos, por um lado não há como não
avaliar como bem-vinda a licitação que implicará na feitura de, entre outras
coisas, estudos geotécnicas, mapeamento das fundações e avaliação do estado da
estrutura, analisando a possibilidade de construção de subsolo e a necessidade
de reforço nos pilares. Como o prédio do Cinema Icaraí está praticamente
abandonado há 8 anos, esse tipo de análise é fundamental. A licitação também
prevê a feitura de projetos complementares de climatização, acústica,
sonorização, impermeabilização, segurança, acessibilidade etc.
Entretanto, uma questão fundamental que passa além desses
aspectos técnicos de engenharia e arquitetura é entender, através da licitação,
o que a Universidade Federal Fluminense deseja fazer com o prédio do Cinema
Icaraí.
Como diz um dos documentos da licitação, o termo de
referência (anexo VI do edital de concorrência n.º 06/2013/ad), o objetivo é muito
claro: “transformar a edificação em um Centro Cultural”. Acredito que dessa
ideia praticamente ninguém discorde, uma vez que o Cinema Icaraí, inaugurado em
1945, ocupava o térreo e o primeiro pavimento de um edifício de três andares que
continha também apartamentos residenciais. O cinema fazia parte de um
empreendimento imobiliário que não se resumia apenas à sala de projeção, tal
como se dera com os prédios da Cinelândia nos anos 1920, no Rio de Janeiro, ou
em edificações semelhantes ao do Cine Icaraí em Niterói, como os do Cine São
Bento (de 1954, já demolido) ou Cine Alameda (de 1960, hoje um supermercado). Desse modo, há relativamente bastante
espaço no prédio a ser explorado para além da sala de exibição.
Mas como já escrevi em outras ocasiões nesse mesmo blog,
acredito que não houve suficiente discussão junto à comunidade universitária e
à sociedade civil sobre qual seria a função que se desejaria para o Cinema
Icaraí, para além da preservação de sua arquitetura tombada pelo Inepac.
Até porque, um outro documento da licitação (anexo VI-A do
edital de concorrência n.º 06/2013/ad – o mesmo do edital de ideias para o
Cinema Icaraí), que descreve as propostas de uso do espaço, especifica que a
edificação, além de um “centro cultural”, também seria um “centro de lazer” e
um “centro empresarial”. Isto é, há uma aparente contradição. Esse mesmo anexo da
licitação menciona um outro documento que nunca foi divulgado publicamente: “Estudo
de Viabilidade, desenvolvido pela empresa Contécnica – Consultoria Técnica e
apresentado à UFF em setembro de 2012”. Eu participei de uma reunião na SAEN
(Superintendência de Arquitetura e Engenharia da UFF), em maio de 2013, mas
nunca tive acesso a esse estudo dedicado a avaliar a auto sustentabilidade
financeira do Centro Cultural.
O Icaraí exibindo "Psicose" no projeto vencedor do concurso |
As mesmas diretrizes desse documento de referência já
constavam, exatamente com os mesmo itens, no edital do Concurso de Ideias para
Reforma do Cinema Icaraí, lançado em dezembro de 2012. Isto me parece dizer o
seguinte: o destino do Cinema Icaraí foi traçado em 2012, a partir do Estudo de
Viabilidade, e sem ampla discussão. Na reunião que eu tive com as arquitetas da
SAEN, a impressão que eu tive é que a transformação do Cine Icaraí numa sala de
música aliada a empreendimentos comerciais, abrigando ainda a Companhia de
Ballet de Niterói (e o cinema como atividade absolutamente marginal), já era algo
decidido e sacramentado. A inclusão do mesmo “termo de referência” de 2012
nessa licitação apenas reforça minha impressão.
Conforme esse documento de referência, provavelmente visando
a auto sustentabilidade financeira do futuro centro cultural, empresarial e de
lazer, estão previstos também espaços para “salas empresariais” (provavelmente
para serem alugadas), assim como para empreendimentos comerciais auxiliares à
função de centro cultural (livraria, bombonier, café, restaurante).
Um debate que travei na reunião que tive na SAEN foi discutir
a afirmação de que não era “sustentável financeiramente” que o Cinema Icaraí
funcionasse como cinema, afirmação aparentemente sustentada pelo tal Estudo de
Viabilidade. A ironia é que a licitação prevê que a sala de exibição original
seja transformada em “uma Sala de Música destinada à apresentação dos
diferentes projetos musicais da Universidade [...], reversível obrigatoriamente
em sala de conferência e, opcionalmente, em sala de projeção cinematográfica”.
Isso me leva a alguns questionamentos.
1 - Se a auto sustentabilidade financeira foi invocada como
argumento contrário à utilização do espaço como cinema (tal qual foi concebido
originalmente em 1945), por que esse argumento não é utilizado quando se propõe que ela
seja usada para música clássica? Só o cinema é obrigado a dar lucro ou pelo
menos pagar suas contas? A UFF ainda crê que apenas a música erudita seja arte,
enquanto o cinema é mero comércio? Alguém fala na auto sustentabilidade financeira do Teatro Municipal João Caetano? Lembro que hoje em dia o lucro dos
exibidores vem em grande parte da bombonier. Desse modo, importa menos a venda
de ingressos do que a de pipoca e refrigerante. Seria na exploração do comércio
de comes e bebes que estaria a verdadeira auto sustentabilidade do espaço.
2 – Como “contrapartida” (ou cala boca?) para o
desvirtuamento da sala de projeção em sala de música, está prevista a
construção de uma pequena sala de cinema (“cineclube”) de 75 lugares e 125 m2 no
terceiro pavimento do prédio. Essa foi uma sugestão que levantei em reunião com o SAEN,
pensando em cineclubes da UFF que sofrem com a falta de locais adequados, sendo
realizados, muitas vezes, na casa de alunos ou até mesmo no Rio de Janeiro (como na Cinemateca do
MAM). Essa salinha poderia ser uma boa sala para projeções em DVD ou em formatos amadores e
semiprofissionais (16mm, S8mm etc.) Entretanto, mesmo sob esse espaço de cineclube
paira uma exigência de lucratividade que aparentemente não se aplica à sala de
música ou à companhia de dança, como diz o termo de uso da licitação:
“Contemplando pelo menos uma Sala de Projeção (Cinema) independente,
objetivando resgatar o uso tradicional da edificação, contribuindo para seu
autofinanciamento.”
3 – O Cine Arte UFF tem previsão de inauguração no início de
2014, após cinco anos de amplas reformas. Conforme conversa pessoal com um de
seus funcionários, o cinema do Centro de Artes continuará sendo utilizado
como local de ensaio da Orquestra Sinfônica Nacional da UFF. A reforma previu
mecanismos de adaptação acústica tanto para a função cinema quanto para sala de
música. A pergunta é: será que os músicos vão querer ficar atravessando a
movimentada Rua Miguel de Frias com seus instrumentos de uma sala de ensaios
para uma sala de apresentação? Acho difícil. Será que Icaraí terá dois cinemas
restaurados que funcionarão essencialmente como salas de música enquanto seus
moradores continuarão tendo que se deslocar para o Plaza Shopping ou Bay
Market, no centro da cidade, para ver filmes? É isso que os niteroienses
desejam?
Na planta do projeto se prevê o cinema como palco para orquestra |
4 – A UFRJ possui inúmeros cursos de graduação em música.
Naturalmente, a UFRJ tem uma bela
sala de espetáculos no centro do Rio. A UFF não tem nenhum curso na área de
música, mas possui um Departamento de Cinema e Vídeo com dois cursos
(bacharelado e licenciatura) em cinema, dos mais tradicionais e disputados do
Brasil. Por mais que a UFF tenha várias atividades musicais (orquestra,
quarteto de cordas, coral), elas já usam, por exemplo, o palco do Teatro
Municipal João Caetano. Já o curso de cinema da UFF praticamente não tinha (e
nem continuará tendo) acesso ao espaço do Cine Arte UFF para seus eventos, uma vez que de manhã ele é ocupado pelos ensaios da orquestra e à
tarde pela programação regular do cinema. Não é no mínimo estranho que o
Departamento de Cinema e Vídeo da UFF não tenha sido jamais convocado
oficialmente pela reitoria da UFF para discutir sobre os rumos do Cinema
Icaraí? E não é no mínimo equivocado que o curso de cinema da UFF não tenha uma
relação estreita com um cinema comprado pela universidade? É preciso lembrar
que, além de filmes, os alunos do curso de cinema (e de outros cursos, como
Produção Cultural), também trabalham com festivais de cinema (o Festival Brasileiro de Cinema Universitário), organizam mostras (a recente de Cinema e Direitos
Humanos foi organizada pela UFF) e estudam a exibição cinematográfica (no
último semestre foi oferecida uma disciplina de curadoria de mostras na
graduação)? Porque o curso de cinema da UFF está sendo alijado do Cinema Icaraí
após ele ser comprado pela própria UFF?
5 – O Cinema Icaraí é um cinema tombado, não apenas pela sua
fachada, mas pela sua história e função como espaço de convivência e de experiência,
enfim, como local de encontro entre pessoas e delas com o cinema. O ato de assistir
filmes numa sala de rua típica dos anos 1940 é algo em extinção, sendo necessário
preservar para as novas gerações a possibilidade de conhecer o cinema numa sala
ampla com uma tela enorme. Isso inegavelmente se constitui numa experiência
social e sensorial essencialmente diferente daquela proporcionada pelos
pequenos, apertados e padronizados multiplexes de shopping atuais. Assistir a
um filme sentado num balcão, entrar num cinema diretamente da calçada da rua e
não por dentro de um shopping, sair da sala escura no final de uma sessão e dar
de frente para a praia e sentir a brisa do mar, são experiências valiosas que
precisam ser mantidas. E mais ainda, são experiências hoje raríssimas de serem
desfrutadas (em Niterói ela não é mais possível atualmente) e que, também por isso, possuem um grande potencial de atraírem
público. Simplesmente exibir um filme não seduz mais ninguém hoje em dia em
lugar algum. A prefeitura de Niterói tentou esse ano fazer mais uma vez uma espécie de cineclube
no Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, no Campo de São Bento e a projeção de
filmes brasileiros em DVDs raramente atraía mais do que duas ou três pessoas
(fui testemunha ocular de uma das exibições fracassadas desse projeto “Cultura
Niterói – Arte na Rua” em março de 2013). Agora, projetar um filme interessante
numa boa cópia numa sala como a do Cinema Icaraí, com certeza é um programa que
pode tirar as pessoas de dentro de casa e de frente de suas televisões e
computadores. A manutenção da plateia e do balcão originais do Cinema Icaraí se
não exclusivamente, pelo menos preferencialmente (e não opcionalmente) como sala
de cinema representaria ainda um extraordinário incentivo para a cultura da
cidade. Niterói poderia ser integrada à eventos cinematográficos cariocas tais
como as concorridíssimas mostras de filmes do Centro Cultural Banco do Brasil,
ou permitir que a cidade novamente sedie sessões do Festival do Rio e de outros
eventos de destaque internacional (sem falar no próprio Araribóia Cine, que
sofre há anos por falta de espaço em Niterói). Uma sala histórica e de grande
dimensão como o Cinema Icaraí pode inverter o fluxo de niteroienses que tem que
se deslocar para o Rio de Janeiro para assistir a bons filmes, e trazer para
Niterói eventos que mesmo no Rio tem dificuldade para encontrar bons espaços de
exibição. O Cinema Icaraí tem tudo para se igualar ou até superar em Niterói o
que o Cinema Odeon (mantido pela Petrobrás) foi e continua sendo para a vida
cultural do Rio de Janeiro. Ou ainda, se inspirar no ainda mais interessante
projeto do recém restaurado Éden Theatre, um cinema de 1889 em La Ciotat (perto
de Marselha, França), e representar algo inédito no Brasil.
Para isso é importante o diálogo e a troca de experiências e
sugestões. Nada mais natural para um cinema de uma universidade.Desse modo, ainda há espaço para mudanças, pois num documento da licitação está previsto:
Aceito o Anteprojeto pela UFF, deve o mesmo ser levado à
Consulta Prévia nos órgãos competentes das esferas municipais, estaduais e/ou
federais, que se fizerem necessários, especialmente o Departamento de
Patrimônio do Ambiente Construído – DEPAC e Instituto Estadual do Patrimônio
Cultural – INEPAC; dentro das normas de representação gráfica estabelecidas
pelos referidos órgãos, objetivando identificar as não conformidades que se apresentam,
de modo a que, na fase seguinte, as mesmas sejam devidamente adequadas,
viabilizando o desenvolvimento do Projeto Legal. Esta Consulta Prévia deve ser
oficializada e apresentada à UFF a comprovação de sua realização.
Esperemos essa consulta prévia para abrirmos o debate sobre o que a UFF e Niterói querem para o Cinema Icaraí.
Muito interessante a sua análise. Sou atualmente aluna de Cinema da UFF e infelizmente nunca reparei na tamanha importância do Cinema Icaraí para minha construção individual e profissional. Mantenha-nos informados sobre a construção se possível, obrigada.
ResponderExcluirExcelente trabalho, parabéns! Vamos continuar a luta a partir da leitura de sua página ! Pressão na UFF para continuar uma sala de exibição!
ResponderExcluirO cinema Icaraí não pode acabar !
Prezado Prof. Rafael de Luna,
ResponderExcluirComo participei do processo desde o início, gostaria de esclarecer certas questões:
1) O Estudo de Viabilidade desenvolvido pela Contécnica é um documento que trata das possibilidades de uso do prédio, ou seja, quais atividades a edificação pode comportar, por suas limitações físicas. Esse estudo se fez necessário para respaldar o programa de necessidades;
2) Sobre o programa de necessidades definido na época da montagem do Concurso de Ideias, informo que foi decisão tomada pelo “Grupo de Trabalho responsável pela elaboração do Edital do Concurso de Ideias” integrado por técnicos da SAEN, professores da EAU e representantes da sociedade civil, a partir das demandas da Universidade e das expectativas da comunidade;
3) O uso cinema não é marginal, é um dos usos culturais da edificação. O espaço reservado para salas comerciais a serem alugadas deve destinar-se a atividades correlatas ao uso cultural do prédio, como estúdio fotográfico por exemplo. Essa é uma definição a ser tomada quando da montagem do plano de gestão do prédio. Lembro que tal atividade já existia quando o Cinema Icaraí ainda estava em funcionamento;
4) Sobre a auto sustentabilidade financeira, esta é uma decisão tomada pelos gestores, conforme planejamento financeiro da instituição. Sobre esse tema, o objetivo não é que o prédio dê lucro e sim que se mantenha.
Aproveito para informar que o Estudo Preliminar desenvolvido pela SAEN/UFF a partir da proposta vencedora do Concurso de Ideias foi aprovado pelos representantes da sociedade civil, pelo Diretor da Companhia de Ballet de Niterói, pelo INEPAC e pelo Conselho Municipal de Patrimônio de Niterói, composto também por representantes da sociedade civil. Todos os documentos, Estudo de Viabilidade da Contécnica, Nomeação do Grupo de Trabalho para elaboração do Edital do Concurso de Ideias, inclusive os documentos que comprovam as aprovações citadas acima, estão disponíveis para consulta na SAEN/UFF.
Prof. Milena, obrigado pelos importantes esclarecimentos e pela disposição em debater a questão do Cine Icaraí. Embora o que você tenha dito (que o o uso cinema não será marginal) não me parece corresponder ao que os documentos tem dado a entender. A palavra "opcionalmente" não está lá por acaso. Mas espero sinceramente - e o que eu escrevo e discuto tem esse objetivo - que você esteja correta. Além disso, algumas coisas que você escreveu não parecem contradizer totalmente o que eu argumentei. Eu continuo acreditando que as decisões sobre os usos futuros do prédio não foram amplamente discutidos e debatidos com as partes diretamente interessadas e capazes de colaborar com ideias e sugestões (professores e estudantes do Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, por exemplo), por mais que os projetos e estudos tenham sido aprovados em diversas instâncias públicas. Infelizmente, tenho testemunhado diversas audiências públicas que tem como único objetivo sacramentar com um verniz democrático o que já foi decidido anteriormente a portas fechadas, não havendo espaço para alterações em planos já definidos. Novamente, torço e desejo que esse não seja o caso com o Cinema Icaraí da UFF.
ResponderExcluirAtenciosamente,
Rafael de Luna